Foi uma história tão insólita, que fico pensando se
devo envolver o leitor em tal bravata, vão me chamar de louco, não me importo,
eu vi, eu estava lá quando tudo aconteceu.
Eu tinha um amigo, ele escrevia quadrinhos e um dia
me chamou e começou o seu relato. Ele tinha uma vida, uma casa, uma esposa e um
filho, tinha também o seu trabalho porcamente reconhecido, o nível de frustração
era maior do que ele podia suportar, até que um dia teve uma ideia genial, iria
criar uma história que mesmo que não virasse nada, ao menos faria com que se sentisse
feliz, como um modo de sublimar um pouco o seu desespero.
Era um homem muito disciplinado, e sempre no mesmo
horário escrevia o roteiro e ilustrava sua história perfeita, era assim que ele
se referia - “Minha História Perfeita”.
Dia após dia, começou a compor cada detalhe, era o
protagonista de tudo: A vida perfeita, a casa dos sonhos, a esposa ideal e o
filho que todo pai sonha, contava os minutos para chegar o momento de continuar
sua obra, até que um dia, algo muito estranho aconteceu; ele foi absorvido pela
história, e assim foi por vários dias, veja que o sentido aqui é literal, vou
repetir: ele foi absorvido pela história, entrou dentro do quadrinho e cada vez
que ele começava a escrever se tornava transparente neste mundo e se
materializava dentro de sua própria criação. Ele estava radiante, ficava lá o
tempo exato em que geralmente e disciplinadamente trabalhava naquela história,
vivendo em sua casa de sonhos, com sua esposa ideal e filho exemplar.
Estava tudo bem, até que certo dia a coisa
desandou, foi como o de costume, ele sentou e começou a desenhar e em poucos
segundos estava lá, dentro de sua história, mas desta vez tudo estava estranho,
até então ele tinha o controle sobre aquele lugar, mas aquele dia não foi
assim, ao invés do prazer que sempre era proporcionado pelas poucas horas que
passava em seu mundo ideal, tudo se inverteu, a história começou agir por conta
própria. Seria natural se ele estivesse no nosso mundo, afinal é assim que
vivemos, podemos ter controle sobre nossos atos, mas não temos controle nenhum
sobre os caminhos e desenlaces do destino.
Pouco a pouco tudo foi se transformando em um
pesadelo tão grande, que passou a ter um horror imenso quando a hora de
trabalhar em sua história se aproximava, não importava onde estivesse, era
absorvido e ficava lá até o horário em que poderia sair de novo, mas tudo foi
piorando, pois estava ficando cada vez mais difícil sair, o tormento
aumentava dia a dia, foi neste momento que ele me chamou e contou-me o que
estava acontecendo, a princípio pensei que meu amigo estava ficando louco, pois
era assim que ele se portava, estava suando e muito aflito, queria contar a
história completa antes que fosse tarde.
Eu
estava sentado bem à frente dele e tudo se passou tão rápido e o horror foi tão
grande, que sinto arrepios e até certa dificuldade em narrar este último
momento, mas já comecei, e não posso abandonar o leitor que atenciosamente
chegou até aqui comigo.
Meu amigo diz que me chamou, pois precisava de
ajuda e não sabia como seria assim que
chegasse a fatídica hora, ele me conta em prantos esta parte da história,
temendo que ao chegar o horário de trabalho tornasse a ser absorvido, queimou
tudo, esvaziou o seu estúdio, não poupou nada, no lugar que antes era
agradavelmente planejado para o seu trabalho estava completamente vazio, no
fundo do seu quintal, tudo estava reduzido a cinzas, ele estava todo sujo e
cheirando a fumaça, passou a madrugada toda, remexendo a fogueira para que sobrasse
só cinzas.
De repente o relógio da igreja começou a badalar, e
ao som de cada badalada meu amigo estremecia, sem saber o que iria acontecer,
eu o acalmei dizendo que era apenas um sonho, fruto de seu cansaço e insatisfação
com tudo, porém quando o sino deu a última badalada, diante de meus olhos meu
amigo começou a desaparecer, e tudo foi tão rápido que a única coisa que ficou na minha memória, foi o olhar dele se
desvanecendo na minha frente, e onde ele estava sentado apareceu um gibi,
fiquei atônito e por alguns segundos nem sequer consegui me mover, respirei
fundo e num gesto brusco me levantei, apanhei a história, e comecei em pé mesmo
a ler com muita voracidade, devorando cada página, e constatando cada detalhe
que ele havia descrito para mim.
Página a página o horror absorvia a história, tal
qual ele disse, tive medo ao virar a última página, mas precisava saber o que
aconteceu...
Lágrimas escorrem da minha face ao ver as últimas
tiras, na primeira; estou desenhado lendo o gibi em pé de frente à cadeira que
meu amigo estava sentado antes de desaparecer, no segundo quadro todo o lugar
estava completamente destruído pelo fogo, um deserto de cinzas sombrio e
desolador, no terceiro quadro, fechei os olhos como se pudesse interromper o
processo, ficando em minha mente apenas um rápido vislumbre da palavra “Fim”. Meu
amigo estava lá preso, batendo na última página como um prisioneiro atrás de um
vidro, com um desespero atroz em seus olhos, tive a esperança de que ao acabar
o horário que ele costumava trabalhar, ele saísse de lá e aparecesse novamente
em minha frente, mas isto não aconteceu, já se passaram dez anos, e todos os dias
eu leio a história, contemplo a página final dividida em três quadros e espero
a última badalado do sino da igreja, na esperança de vê-lo novamente diante de
mim, tentando ignorar completamente que de fato meu amigo foi absorvido pelo “Fim” de sua história “perfeita”.
Marise Lima Muniz