sábado, 14 de abril de 2012

Uma História Perfeita


Foi uma história tão insólita, que fico pensando se devo envolver o leitor em tal bravata, vão me chamar de louco, não me importo, eu vi, eu estava lá quando tudo aconteceu.
Eu tinha um amigo, ele escrevia quadrinhos e um dia me chamou e começou o seu relato. Ele tinha uma vida, uma casa, uma esposa e um filho, tinha também o seu trabalho porcamente reconhecido, o nível de frustração era maior do que ele podia suportar, até que um dia teve uma ideia genial, iria criar uma história que mesmo que não virasse nada, ao menos faria com que se sentisse feliz, como um modo de sublimar um pouco o seu desespero.
Era um homem muito disciplinado, e sempre no mesmo horário escrevia o roteiro e ilustrava sua história perfeita, era assim que ele se referia - “Minha História Perfeita”.
Dia após dia, começou a compor cada detalhe, era o protagonista de tudo: A vida perfeita, a casa dos sonhos, a esposa ideal e o filho que todo pai sonha, contava os minutos para chegar o momento de continuar sua obra, até que um dia, algo muito estranho aconteceu; ele foi absorvido pela história, e assim foi por vários dias, veja que o sentido aqui é literal, vou repetir: ele foi absorvido pela história, entrou dentro do quadrinho e cada vez que ele começava a escrever se tornava transparente neste mundo e se materializava dentro de sua própria criação. Ele estava radiante, ficava lá o tempo exato em que geralmente e disciplinadamente trabalhava naquela história, vivendo em sua casa de sonhos, com sua esposa ideal e filho exemplar.
Estava tudo bem, até que certo dia a coisa desandou, foi como o de costume, ele sentou e começou a desenhar e em poucos segundos estava lá, dentro de sua história, mas desta vez tudo estava estranho, até então ele tinha o controle sobre aquele lugar, mas aquele dia não foi assim, ao invés do prazer que sempre era proporcionado pelas poucas horas que passava em seu mundo ideal, tudo se inverteu, a história começou agir por conta própria. Seria natural se ele estivesse no nosso mundo, afinal é assim que vivemos, podemos ter controle sobre nossos atos, mas não temos controle nenhum sobre os caminhos e desenlaces do destino.
Pouco a pouco tudo foi se transformando em um pesadelo tão grande, que passou a ter um horror imenso quando a hora de trabalhar em sua história se aproximava, não importava onde estivesse, era absorvido e ficava lá até o horário em que poderia sair de novo, mas tudo foi piorando, pois estava ficando cada vez mais difícil sair, o tormento aumentava dia a dia, foi neste momento que ele me chamou e contou-me o que estava acontecendo, a princípio pensei que meu amigo estava ficando louco, pois era assim que ele se portava, estava suando e muito aflito, queria contar a história completa antes que fosse tarde.
Eu estava sentado bem à frente dele e tudo se passou tão rápido e o horror foi tão grande, que sinto arrepios e até certa dificuldade em narrar este último momento, mas já comecei, e não posso abandonar o leitor que atenciosamente chegou até aqui comigo.
Meu amigo diz que me chamou, pois precisava de ajuda e não sabia  como seria assim que chegasse a fatídica hora, ele me conta em prantos esta parte da história, temendo que ao chegar o horário de trabalho tornasse a ser absorvido, queimou tudo, esvaziou o seu estúdio, não poupou nada, no lugar que antes era agradavelmente planejado para o seu trabalho estava completamente vazio, no fundo do seu quintal, tudo estava reduzido a cinzas, ele estava todo sujo e cheirando a fumaça, passou a madrugada toda, remexendo a fogueira para que sobrasse só cinzas.
De repente o relógio da igreja começou a badalar, e ao som de cada badalada meu amigo estremecia, sem saber o que iria acontecer, eu o acalmei dizendo que era apenas um sonho, fruto de seu cansaço e insatisfação com tudo, porém quando o sino deu a última badalada, diante de meus olhos meu amigo começou a desaparecer, e tudo foi tão rápido que a única coisa que  ficou na minha memória, foi o olhar dele se desvanecendo na minha frente, e onde ele estava sentado apareceu um gibi, fiquei atônito e por alguns segundos nem sequer consegui me mover, respirei fundo e num gesto brusco me levantei, apanhei a história, e comecei em pé mesmo a ler com muita voracidade, devorando cada página, e constatando cada detalhe que ele havia descrito para mim.
Página a página o horror absorvia a história, tal qual ele disse, tive medo ao virar a última página, mas precisava saber o que aconteceu...
Lágrimas escorrem da minha face ao ver as últimas tiras, na primeira; estou desenhado lendo o gibi em pé de frente à cadeira que meu amigo estava sentado antes de desaparecer, no segundo quadro todo o lugar estava completamente destruído pelo fogo, um deserto de cinzas sombrio e desolador, no terceiro quadro, fechei os olhos como se pudesse interromper o processo, ficando em minha mente apenas um rápido vislumbre da palavra “Fim”. Meu amigo estava lá preso, batendo na última página como um prisioneiro atrás de um vidro, com um desespero atroz em seus olhos, tive a esperança de que ao acabar o horário que ele costumava trabalhar, ele saísse de lá e aparecesse novamente em minha frente, mas isto não aconteceu, já se passaram dez anos, e todos os dias eu leio a história, contemplo a página final dividida em três quadros e espero a última badalado do sino da igreja, na esperança de vê-lo novamente diante de mim, tentando ignorar completamente que de fato meu amigo foi absorvido pelo  “Fim” de sua história “perfeita”.


Marise Lima Muniz

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